Tuesday, March 09, 2010

A Flor da Vila Mariana

Esse conto foi inventado por um homem, é a versão de um homem, portanto só pode conter um dos lados da história. A história completa necessitaria de uma mulher, de sua versão, mas esta não existe.

Foi antes de tudo, ou talvez no início do fim. Eles caminhavam lado a lado pelas ruas antigas da Vila Mariana, carregavam às costas a bagagem do fim de semana. Ela era pequena e frágil, tinha sonhos ainda não desfeitos, coragem, humor, delicadeza. Ele já passara dos 30, carregava mágoas e derrotas em excesso. A casa em que ficariam fora construída na década de 50, parecida com muitas do bairro, tinha dois andares e uma área à frente onde no passado fora uma garagem, mas que à época estava toda ocupada por cartazes de filmes, painéis em tamanho natural, letreiros de cinema. O portão antigo e pesado foi aberto com dificuldade pelos braços da menina, a senha do alarme digitada através de uma anotação feita em papel. Na recepção, ela mostrou-lhe a mesa em que trabalhava, suas coisas e o computador através do qual ambos conversavam por horas, todas as tardes. Antes de subirem para o segundo andar, ela mostrou-lhe o acervo de filmes com a certeza de que extasiaria o namorado, vendo-a caminhar por entre as estantes, ele sonhou com o amor e viveu um pouco a vida que se auto-negara até então.

Ele subiu as escadas atrás dela, entraram em uma sala de aula, colocaram as cadeiras nos cantos, maquinalmente espalharam os colchões finos e cobertas pelo chão. A menina arrumou a colcha com cuidado, e como que num ritual para o amor, deitou-se como de praxe, olhando sem olhar, convidando-o sem convidar. Naqueles momentos o amor explodia no peito dele, e o que queria então era protegê-la do mundo, de toda dor, do que era ruim e vil, mas ele era ruim e vil, e em um futuro próximo transformaria o amor em desconfiança, falsidade, mentira. Mas o amor ainda era possível naqueles dias, e seria ainda poucos meses depois quando subiriam a escada de um motel barato na mesma Vila Mariana, motel em que passariam uma madrugada de sexo, a madrugada em que ela talvez tenha sido o que ele queria que ela fosse, mas ali já seria o amor cheio de mágoas, o amor que se esconde para não se machucar e que ao mesmo tempo não se recrimina por ferir. Mas na sala, na escola de cinema, ainda cabia ingenuidade mesmo para os não ingênuos, cabia ainda honestidade e coragem para enfrentar o cinismo. Ele com suavidade deitou-se sobre ela, pois aquele era um momento de amor e não de sexo, e havia o colchão fino que poderia machucá-la, havia a lembrança recente da primeira briga e das primeiras palavras que magoam, assim aquele momento só poderia ser o momento do amor. Como sempre ele queria que ela tivesse um orgasmo, mesmo sabendo que esse não era o prazer que supria o corpo dela, aquele era o momento do amor e para ele o amor tinha que ser suave e ter um orgasmo no fim.

Após o amor, de joelhos, ela falou-lhe, com seu jeito de judia, algumas palavras em árabe, de romancistas sul-africanos, de psicanalistas franceses. Depois, caminhando nua pela sala, pegou os óculos sobre a estante, olhou-o e sorriu, chegou-se e pousou a cabeça sobre o seu peito arfante e frio. Ele então falou do dia que se descobriu apaixonado, de um oráculo a repetir o nome dele como que para despertá-lo, da certeza de que era hora de recomeçar, de tentar novamente o amor, e da certeza de que aquele era o amor definitivo.

Mais tarde lavaram o banheiro, depois tomaram o banho que fazia parte do ritual. Os ritos aquele fim de semana estiveram mais presentes, enquanto ela cozinhava ele saiu para comprar o que faltava para o almoço, depois houve a procura por um café nas ruas do bairro, filmes antigos, baldiações em estações de metrô, cervejas em bares decadentes da Augusta. Tantos hotéis de São Paulo, tantas pousadas do interior, mas aquele foi o fim de semana do qual não se pode esquecer, onde o desejo de uma vida comum por um breve momento foi possível para ele. O homem cínico e covarde se sujeitando ao mais puro e suave que a menina carregava, para depois, nos meses seguintes, dinamitar e implodir tudo. O homem mostraria só saber amar a si mesmo, a mulher amou-o, mas ele queria mais e mais e por isso a acusou e humilhou até conseguir destruir tudo de belo que poderia existir, ficando como talvez fosse seu desejo não expresso (a literatura que substui a vida) de que tudo fosse novamente o que poderia ser, mas não foi.

De volta à casa ele espalhou frases pornográficas pelos quadros negros, escondido, observou-a dormir, no escuro mais escuro da Vila Mariana ouviu falar de um motel chamado "Flor da Vila Mariana" e riu, pois a única flor do bairro estava ao seu lado, mesmo que ela não aceitasse aquilo e tivesse negado a flor que ele colocara no seu cabelo aquela tarde (moça inteligente e irônica, não se prestaria a algo assim). Meses depois, no motel, depois da primeira separação e da primeira volta, depois da realidade, das fraquezas já expressas e postas à mesa, o sexo prevaleceu sobre o amor, o prazer dos corpos sobre o desejo de amar. Dali a queda seria vertiginosa, nunca mais seriam os mesmos, ela receosa do mal amar dele, se protegendo e resguardando, ele tentando agarrá-la a qualquer custo, ofendendo-a para tê-la (a tolice dos apaixoandos), se afastando de si e dos seus sonhos, alimentando rancor e mais rancor.

Um ano depois ele caminhava pelos bares da Augusta só, bebia em todos os bares que outrora bebeu com ela, pisava nas pegadas que haviam deixado juntos. Ele perdeu ali o amor e a capacidade de amar. Quem sabe um novo oráculo um dia lhe traga novamente o amor, mas até lá o que lhe resta é reviver o passado e não olhar para si para não enxergar o que não deve ser visto.

Um dia uma mulher inexistente escreverá a sua história, e nessa história só caberá a sua versão, pois cada um só pode enxergar o que seus olhos são capazes de ver.

Sunday, March 07, 2010

É tudo uma quetão de tempo menina

Alice, se te vejo alegre, se não a vejo com seus desenhos, se a vejo se afastar, se não consigo dizer-lhe, é por que no fim a deixarei nos braços de outro, e também por que sua alegria me incomoda, e também por que só consigo não ter.

Gostaria de ser como você, ter um corpo e o sexo enquanto amanhece, cheirando a álcool, cigarro e outros cheiros que agarram aos corpos depois de uma madrugada longa e perdida em bares, festas. Mas não sou assim.

Então vou explicar-me.

Amanheço antes de todos, durmo antes de todos, carrego pedras nas costas, fumo cigarros quando já não aguento mais, bebo sozinho em bares, olho as mulheres de longe, me sufoco com o ar que tento respirar. Sou pesado. Quando sorrio (e isso é raro) é uma careta, quando tento chorar, não consigo lágrimas (se bem que há pouco o meu joelho na mesa me fez sentir um pouco gente de novo), quando converso, é apenas por protocolo, quando beijo, minha saliva é de bocas que não existem mais.

Alice, quero beijá-la, fazer o amor com raiva ou carinho (a escolha é sua), mas não posso. Se fizer isso terei que guardá-la em uma caixa, trancá-la, por que só existo no passado e no futuro, num tempo teórico que inexiste e que exige a razão que destrói tudo. Para tê-la teria que ser no vivido, no presente, como fazem os vivos, mas esse tempo ainda não descobri onde fica, como se faz para chegar até ele (talvez uma vez numa piscina com um corpo boiando nos meus braços -talvez).

Menina, quero tê-la para mim, mas não posso pois vivemos em tempos distintos. Você tem o corpo, os sentidos, o vivido, eu tenho uma casca, uma dor de cabeça e uma vida que não pode ser vivida. Para tê-la eu teria que abrir um buraco no espaço, entortar a matéria e juntar os tempos. Mas acho que isso daria muito trabalho.

Sunday, February 21, 2010

Ciúmes ou o macho na parede

Os pés, os dedos longos nas mãos pequenas, o cheiro da pele, o cabelo sempre à altura da nuca, o umbigo que eu mantinha limpo e são, a voz, o coração, os sentidos, tudo me pertencia, era meu. Os olhos dos outros para ela me feriam, os olhos dela para outros me rasgavam a pele, faziam-me dos ossos faca. Ela era minha, cada respiro, cada suor, cada gesto, cada sensação. Sua ignorância a fez rebelde, dona do corpo que era meu.

Sua incapacidade de perceber provocou-lhe lágrimas, revolta de menina por uma injustiça que era a mais justa. Agora outros a tocam, beijam, dão-lhe gozo, a tornam cada vez menos dona de si. Ela tem ainda um único dono e por isso agora é de ninguém, menos dela do que de todos. A minha posse se multiplicando por outras mãos na sua pele impura, no seu cheiro impuro, no seu sexo impuro que a tornam odiosa, impossível, intocável. Infeliz, sabe que lhe falta algo: ser objeto, coisa, um bem a se dispor.